Quiropraxia é segura?
Texto: Ricardo
Fujikawa (originalmente publicado em 30/11/16)
Vi esta pergunta circulando
pela mídia escrita e digital e confesso que fiquei surpreendido com o fato de
que as pessoas ainda tenham dificuldade de saber a diferença entre uma
profissão e os procedimentos terapêuticos de tal profissão.
Para entender isto,
poderíamos fazer a mesma pergunta substituindo a palavra quiropraxia por odontologia,
engenharia, biomedicina, medicina, entre outras, para notar a falta de senso em
tal pergunta. Deveríamos, sim, perguntar se os procedimentos usados pelo
profissional são seguros ou que os riscos inerentes sejam inferiores às
necessidades e benefícios de tais procedimentos.
Em fevereiro deste
ano, recebi um e-mail da Associação de Quiropraxia dos EUA (ACA). Neste e-mail,
se comentava a morte de uma celebridade americana, a modelo Katie May,
conhecida como a “Rainha do Snapchat”
daquele país. Segundo relatos e publicações na sua conta de Twiter, Katie May havia saído de uma
sessão de fotos e depois disto, sentia dores no pescoço. (figuras 1 e 2)
Fig 1
Fig 2
A princípio, os
comentários especulavam se ela teria sofrido uma queda ou algum tipo de
traumatismo que justificasse sua morte ou até mesmo minimizasse a
responsabilidade do profissional que a atendeu. Entretanto, segundo
testemunhas, ela apenas ficou muito tempo em posturas pouco cômodas e que isto
levou ao quadro de dor cervical que a fez procurar um quiropraxista. Vale
comentar que, nos EUA, o quiropraxista faz parte do sistema de saúde, tendo
acesso ao nível primário de contato tal como o clínico geral. Uma pessoa com
cervicalgia ou lombalgia pode tanto procurar um médico como pode procurar um
quiropraxista.
No dia 29 de janeiro,
Katie publica no Twitter que seu pescoço doía e que ela havia ido ao
quiropraxista pela manhã. No dia 1º de fevereiro, Katie comenta que ainda dói e
que iria ao quiropraxista no dia seguinte (2 de fevereiro). No dia 4 de
fevereiro, ela falece.
Tudo isto aconteceu em
fevereiro. Por que somente agora em outubro o assunto voltou às páginas de toda
a imprensa mundial? Porque foi agora em outubro que foi publicado o laudo do
legista sobre a causa da morte da modelo. Segundo o legista Ed Winter, a causa
da morte foi devido a um acidente vascular cerebral causado pela dissecção da
artéria vertebral esquerda, secundária a uma manipulação articular
quiroprática.
Desde então, se
levantou esta grande discussão sobre a segurança dos procedimentos
quiropráticos. Existe muita opinião infundada e muita especulação sobre o
assunto. Detratores da quiropraxia viram nisto a oportunidade dourada de
desferir um golpe à profissão.
Entretanto, deixando
de lado toda a comoção e desinformação gerada, a pergunta relevante que tem que
ser levantada é: se os procedimentos quiropráticos de ajuste/manipulação
articular são necessários e, mais importante ainda, se são seguros.
Para responder estas
perguntas tão relevantes, precisamos olhar as evidências científicas. Vivemos em
uma era em que a Prática Baseada na Evidência (Sackett D, 2002) se impõe em
todos os setores, principalmente na área da saúde. Dentro
deste princípio, as decisões terapêuticas necessitam estar baseadas em três
pilares fundamentais:
-
A melhor
evidência disponível sobre determinado procedimento,
-
As
habilidades do profissional,
-
As
preferencias do paciente.
Sobre as evidências, a
melhor maneira de ver isto traduzido a nível prático, é observar os protocolos
e consensos sobre determinadas condições e seu tratamento.
Em 2008, A Divisão
Ortopédica da Associação Americana de Fisioterapia (APTA) publicou diretrizes
sobre o tratamento clínico de cervicalgias 1. Em suas recomendações,
a primeira intervenção terapêutica recomendada foi:
“os clínicos devem considerar a utilização da
mobilização e manipulação cervical, com ou sem impulso, com a finalidade de
reduzir a dor cervical e a cefaleia.”
Em 2016, Brussières e
colaboradores apresentam uma diretriz para o transtornos associados a
cervicalgia e para os transtornos associados a lesão “em chicote” cervical2. Esta diretriz recomenda para cervicalgias de
aparecimento recente (0-3 meses), um tratamento multimodal com mobilização ou
manipulação cervical, exercícios que devem ser realizados em casa para
recuperar a amplitude de movimento e terapias manuais multimodais.
Vemos que para os
casos de cervicalgia, as evidências recomendam a mobilização e/ou manipulação
cervical.
Este procedimento
deveria ser aplicado por um profissional com formação e habilidade para
realizá-lo. Os quiropraxistas são profissionais competentes para realizar este
tipo de procedimento, embora não sejam os únicos.
Para concluir, nos
resta a pergunta sobre a segurança, ou melhor, sobre os riscos do procedimento.
Muitos quiropraxistas
respondem às críticas, de que os procedimentos quiropráticos trazem risco de
morte, com uma resposta parecida dizendo que os procedimentos médicos
(prescrição farmacológica e cirurgias) matam mais do que os procedimentos
quiropráticos, porém isto não responde a pergunta que todos desejam saber. Além
do mais, sempre se argumenta que os procedimentos médicos são necessários e que
os procedimentos quiropráticos são desnecessários porque carecem de importância
terapêutica.
Novamente, é
importante ver o que mostram as evidências científicas.
Sobre a dissecção da
artéria vertebral, estudos biomecânicos realizados sobre estas artérias revelam
que a tração provocada por um movimento normal ou mesmo por uma técnica de
ajuste/manipulação cervical é cerca de 23 y 78 vezes inferior, respectivamente,
à deformação necessária para provocar lesão nestas artérias3,4,5.
Recentemente, um grupo
de neurocirurgiões da Penn State Hershey Medical Center (Universidade Estadual
da Pensilvânia) publicou uma revisão sistemática e uma meta-análise sobre este
tema, e concluíram6:
“Não existe evidência
convincente que apoie uma relação causal entre a manipulação quiroprática e a
dissecção da artéria cervical. A crença de que existe tal relação causal pode
trazer consequências significantemente negativas tais como litígios judiciais
numerosos.”
O que aconteceu com a
modelo Katie May é um fato lamentável para todos, porém jamais deveria ser
utilizado para desacreditar uma profissão. Todo procedimento terapêutico é
dotado de um risco inerente, porém é necessário que o público tenha as
informações corretas para poder decidir. Recentemente a Faculdade Palmer de
Quiropraxia publicou um estudo comparativo dos tratamentos para a cervicalgia e
os riscos graves e/ou morte associados a estes procedimentos. Esta é a tabela
resultante:
Fonte:
www.palmer.edu/gallup-report/sources/
Vemos que o risco do
procedimento quiroprático é menor que 1 para cada 1 milhão de
ajustes/manipulações vertebrais, enquanto que o uso de anti-inflamatórios leva
a um risco de 153 para 1 milhão.
Nesta era em que as
informações são rápidas e se espalham de maneira imediata, é fundamental ter a
capacidade de buscar informações fidedignas. As evidências científicas ainda
constituem-se na melhor fonte de informação.
Sobre o autor:
Ricardo Fujikawa é formado em
Medicina e especialista em Medicina Interna e Hematologia pela Faculdade de
Medicina de Marilia.
É também formado em
Quiropraxia com honras (Doctor of
Chiropractic Magna Cum Laude) pela Palmer
College of Chiropractic, em Davenport, estado de Iowa. Possui seu título de
mestre registrado pela Universidade de Lisboa e exerce a docência no Real
Centro Universitario Mª Cristina em Madri, Espanha.
Referências:
1. Childs JD, Cleland
JA, Elliott JM, Teyhen DS. Neck Pain Clinical Practice Guidelines Linked to the
International Classification of Functioning, Disability, and Health From the Ortopaedic
Section of the American Physical Therapy Association. Journal of Orthopaedic
& Sports Physical Therapy. Vol.38:Issue.9:A1-A34
2. Brussieres AE,
Stewart G, Al-Zoubi F. The Treatment of Neck Pain-Associated Disorders and
Whiplash-Associated Disorders: A Clinical Practice Guideline. J Manipulative
Physiol Ther. 2016 Oct; 39:523-44.e20
3. Symons BP, Leonard
T, Herzog W. Internal forces sustained by the vertebral artery during spinal
manipulative therapy. J Manipulative Physiol Ther. 2002 Oct;25(8):504-10
4. Herzog W, Leonard
TR, Symons B, Tang C, Wuest S. Vertebral artery Straits during high-speed, low
amplitude cervical spinal manipulation. J Electromyogr Kinesiol. 2012
Oct;22(5):740-6. doi: 10.1016/j.jelekin.2012.03.005. Epub 2012 Apr 5
5. Piper SL, Howarth
SJ, Triano J, Herzog W. Quantifying strain in the vertebral artery with
simultaneous motion analysis of the head and neck: a preliminary investigation.
Clin Biomech (Bristol, Avon). 2014 Dec;29(10):1099-107
6. Church EW, Sieg EP,
Zalatimo O, Hussain NS, Glantz M, Harbaugh RE. Systematic Review and
Meta-analysis of Chiropractic Care and Cervical Artery Dissection: No Evidence
for Causation. Cureus. 2016 Feb 16;8(2):e498